A voz na pessoa trans


icone facebook icone twitter icone whatsapp icone telegram icone linkedin icone email

  Foto: Jéssica Taylor

MAURÍCIO JÚNIOR
Assessor de Comunicação do CREFONO 4

Todas as segundas e quartas-feiras, sempre no mesmo horário, a cabeleireira Jéssica Taylor enfrentava 80 quilômetros de trajeto da Associação de Travestis Unidas na Luta Pela Cidadania (Unidas), em Aracaju, até a Clínica Escola de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Campus Lagarto. Uma hora e vinte minutos de estrada em busca de um sonho: uma voz feminina que fosse compatível com a sua realidade de vida.

Jéssica Taylor se identifica como sendo do gênero feminino desde a infância, embora tenha sido socialmente designada como do gênero masculino. Decidiu, assim, abandonar seu nome de registro e assumir uma nova identidade, caracterizando-a como a própria se via – do gênero feminino.

Após a difícil decisão, deu uma repaginada no visual e tomou, sem o consentimento médico na época, hormônios femininos que a levaram a contrair até os dias de hoje uma hipertensão. Mudou quase tudo, mas um detalhe ainda não a deixava completamente feliz e realizada com essa nova fase: a sua voz.

“Tinha muita vergonha de me apresentar ao chegar aos supermercados, consultórios, nas palestras como presidente da Unidas. Não gravava áudios no WhatsApp por nada nesse mundo. Odiava minha forma de falar e não tinha uma voz condizente com a minha imagem”, relembra Jéssica, que por muitos anos utilizou, sem sucesso, ajustes vocais como nasalizar a voz e forçar um tom agudo em busca de uma identificação vocal feminina.

Há dois anos, a Fonoaudiologia entrou para mudar a vida de Jéssica Taylor e de outras travestis e transexuais de Sergipe, graças a um projeto de extensão realizado pelo professor de voz da UFS, Rodrigo Dornelas. A ideia surgiu depois que o docente participou da Semana de Visibilidade Trans em Aracaju. O professor juntou um grupo de alunos e iniciou um projeto de pesquisa com essa população. Seu objetivo inicial era melhorar a voz dessas pessoas submetidas ou não a cirurgias laríngeas e tratamentos hormonais.

Da esquerda para direita: Fgo. Rodrigo Dornelas, a discente Caroline Oliveira dos Santos, a usuária Jessica Soares, o discente Alberto Silva Souza, a usuária Jessica Taylor, a discente Ane Keslly Batista de Jesus e a usuária Sofia Favero

A experiência e os benefícios do atendimento fonoaudiológico no primeiro ano do projeto foram tão exitosos que a concepção inicial do programa ficou minúscula. Em pouco tempo, a Universidade Federal de Sergipe inaugurava o Ambulatório de Cuidado Integral à Saúde da Pessoa Trans, que passou a contar com o trabalho multidisciplinar de oito especialidades – Fonoaudiologia, Endocrinologia, Psiquiatria, Psicologia, Nutrição, Ginecologia, Otorrinolaringologia e Assistência Social.

“Nosso papel, como fonoaudiólogo, é tentar modificar a frequência da voz por meio de ajustes supralaríngeos. Estou muito feliz com a receptividade do projeto”, detalha Rodrigo Dornelas. O fonoaudiólogo relata que o número de homens trans – mulheres que estão na transição para homens – é a maior demanda do Ambulatório.

No mesmo período, em outra instituição de ensino superior, nascia o Laboratório de Readequação Vocal para Transgênero, idealizado pelo fonoaudiólogo da Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro, João Lopes. “Nosso ambulatório surgiu com dois grandes objetivos: socializar o público trans para nossa vida social e possibilitar que, por meio da Fonoaudiologia, eles tivessem a oportunidade de se inserir no mercado de trabalho. Hoje temos duas mulheres empregadas e outras duas foram promovidas dentro da empresa. Para mim, é muito gratificante participar de tudo isso. Saber que, de alguma forma, estamos contribuindo para uma melhor qualidade de vida dessas pessoas não tem preço”, descreveu João Lopes.

No Hospital das Clínicas (HC), em Recife/PE, vinculado à Universidade Federal de Pernambuco, o trabalho fonoaudiológico no Espaço Trans é comandado pela fonoaudióloga Daniela Vasconcelos. A profissional utiliza duas linhas simultâneas de tratamento na busca de uma personalidade vocal. A primeira abordagem trabalha a mudança de grave para agudo; enquanto a segunda aborda a feminilização da voz, com exercícios de suavização da voz, postura de língua e discurso. Segundo a fonoaudióloga, a maior procura no HC são de mulheres trans – pessoas que genética e fisicamente nasceram homens e se percebem como mulher.

“As travestis e transsexuais fazem muita inflexão, o que termina deixando a voz muito teatral. Forçam o tom da voz e terminam sobrecarregando as estruturas do trato vocal. Nosso objetivo é desconstruir os vícios utilizados na voz, fazendo com que essa população fuja daquela imagem caricata”, descreve Daniela Vasconcelos.

Outro grande ganho da atuação fonoaudiológica com as pessoas trans é o desenvolvimento de pesquisas científicas com o objetivo de aprimorar o trabalho em uma área que, até então, não possui tantos estudos. “Eu, enquanto fonoaudiólogo, preciso ter essa noção de como vou atuar com essa população. Com essa experiência, estamos obtendo, juntamente com os estudantes de Fonoaudiologia, boas descobertas cientificas que, em breve, serão publicadas e compartilhadas com os profissionais das áreas de saúde”, analisou o fonoaudiólogo da UVA.

Assim como a grande maioria das travestis e transsexuais do Brasil, Taciane Oliveira, de Salvador, na Bahia, sofreu preconceitos em casa, na escola e até na faculdade. Mas passou por cima de tudo e, em julho de 2016, conseguiu concluir a sua graduação em Fonoaudiologia. “Sempre tive um sonho de trabalhar na área de saúde e comunicação e me realizei na Fonoaudiologia. Ao longo da graduação aproveitei todo o conteúdo adquirido para treinar todas as técnicas vocais e hoje estou satisfeita com a minha voz”, disse. Seu grande sonho, no momento, é se especializar na área de voz e trabalhar com esse público.

Em meio a tanta intolerância da sociedade, o trabalho fonoaudiológico na busca do aperfeiçoamento vocal tem uma contribuição importante na reinserção desse grupo na sociedade. “A voz é a nossa identidade. Fui uma das primeiras pacientes do Ambulatório e, após todo tratamento realizado, tenho uma nova vida, me sinto uma mulher completa, feliz e realizada. Não tenho medo de falar em público e muito menos de me apresentar como Jéssica Taylor”, resume a sergipana com a autoestima quase batendo no céu. Taylor recebeu alta da Fonoaudiologia e agora está realizando tratamento hormonal no mesmo ambulatório.

Atendimento fonoaudiológico para travestis e transsexuais no Brasil

Espaço Trans
Hospital das Clínicas de Pernambuco
Fonoaudióloga responsável: Daniela Vasconcelos
Contato: (81) 2126-3587 | espacotranshcpe@gmail.com
Gratuito

Ambulatório de Cuidado Integral à Saúde da Pessoa Trans
Universidade Federal de Sergipe – Campus Lagarto
Fonoaudiólogo responsável: Rodrigo Dornelas
Contato: (79) 3631-7076
Gratuito

Laboratório de Readequação Vocal para Transgênero
Universidade Veiga de Almeida/RJ
Fonoaudiólogo responsável: João Lopes
Contato: (21) 2502-3238
Gratuito

Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais
Centro de Treinamento e Referência em DST/SP
Fonoaudióloga responsável: Denise Mallet
Contato: 0800 162 550 ou 5087-9833
Gratuito/SUS

Atendimento para Transssexuais Portadores de HIV/AIDS
Instituto de Infectologia Emílio Ribas/SP
Fonoaudióloga responsável: Daniela Galli
Contato: (11) 3896-1200
Gratuito

« Voltar